segunda-feira, 7 de setembro de 2015

A sua promessa fica cumprida.


Fomos a Fátima por um motivo não especialmente católico: era o único hotel com spa livre num raio de 150 km. Criada por uma mãe que fazia mapas astrais e lia Allan Kardec e por um pai anti-religião que lia sobre extraterrestres e Carl Sagan, sinto-me em relação à religião como se estivesse em país estrangeiro. Em Fátima, rodeada de hotéis aleluias, restaurantes peregrinos e ruas da Jacinta e do João Baptista, tudo me parecia uma caricatura de qualquer coisa que não consigo agarrar. Como sempre, demasiadas questões: para que serve mesmo aquela zona da reconciliação no santuário? Afinal quantas Nossas Senhoras existem? Onde é que fica o José no meio daquela história? (podia continuar)

O novo santuário é bonito. Bonito como aquelas estações de metro da linha vermelha, demasiado grande para o fluxo quotidiano de pessoas, excepto em situações extraordinárias, suponho que ali seja a 13 de maio e 13 de outubro. Não me fez confusão os negócios à volta do santuário: os santos, os postais, as medalhas, os museus interactivos. Mas chocou-me a normalidade das filas organizadas, da sinalética, da banalização do pagamento de promessas em duas modalidades. Como se as pessoas fossem para ali com o mesmo espírito prático de quem vai para a fila das finanças: resolver um problema.

As velas. Eu percebo que é uma questão de segurança mas o acto de acender uma vela ou várias — simbolicamente falando — não é a mesma coisa que pegar numa pilha de velas e atirá-las para um fogo enorme a uma distância de 3 metros. E choca-me que não choque ninguém. Já estou a imaginar a nova modalidade dos Jogos Olímpicos: pagamento de promessas com lançamentos de velas à distância. E depois, as promessas de joelhos. Nunca tinha visto e também nunca tinha imaginado, mas ver homens e mulheres de várias idades naquela posição incómoda, dolorosa e claramente de subserviência sensibilizou-me muito. Esta ideia masoquista, mais ou menos consciente, de que precisamos de pagar em sofrimento o que alguma entidade misteriosa nos deu de bom, se tem origem religiosa, claramente já ultrapassou esses limites. Eu não tenho a fé para me fazer dar voltas de joelhos ao recinto de Fátima, mas não sou indiferente a esse vago e tão pouco racional sentimento de culpa.

Depois de uma manhã no Santuário com o mesmo espírito de quem visita o Zoo, chegámos ao carro e ele não pegava. Sim, um carro com menos de dois anos decidiu morrer em Fátima (e não foi de ironia, foi bateria). Se Deus existe, é um gajo muito vingativo e com péssimo sentido de humor.

4 comentários:

  1. :D És possivelmente a autora do melhor retrato até hoje do local. E olha que até me arrepio toda quando lá vou.

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    1. :D

      eu até percebo que mesmo sem a ligação religiosa estes sítios possam ter um simbolismo em si que é tocante. eu já senti isso noutros locais de culto. são as pessoas que fazem de fátima importante e não a religião.

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  2. Já me disseram que devia ir a Fátima, "pela experiência". Mas também já me aconselharam ver um jogo no estádio, pela mesma razão. Parece que não tem nada a ver, mas acho que a minha renitência em abraçar qualquer das experiências tem a mesma raiz.

    (anyhoo, estive em Compostela duas vezes, gostei muito, mas pirete para ir para a fila ver o santinho morto. e passei por Lourdes, e lembrei-me do Roque Santeiro, que aquilo é Asa Branca on steroids.)

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    1. Compostela nunca fui, gostava de ir. não me importava de fazer um dos caminhos de santiago a pé. Sim, acredito que futebol seja o equivalente para a religião em muitas pessoas.

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